Superavit Empático?
por Sílvia Silva
Os últimos acontecimentos sobre a questão racial nos EUA provocou muitas reações também aqui no Brasil.
A forma como o racismo se manifesta em diversas áreas, inclusive na Segurança Pública e Sistema de Justiça, tomou as ruas e as telas em diversas partes do mundo.
Práticas racistas estão sendo filmadas. A imagem gera mais impacto que palavras e números. Imagem da morte sendo produzida, imagem da reação de pessoas a esta engrenagem mortífera.
Apesar dos anos de ativismo dos movimentos sociais negros e também da extensa (ainda que insuficiente) produção acadêmica sobre as relações raciais no nosso país, ao que parece, para muita gente foi a primeira vez que essa narrativa foi recebida com algum significado. Ousaria dizer que algumas pessoas somente agora estão “acreditando” que o racismo existe no Brasil e também que elas fazem parte desse sistema.
Diante de tudo isso vemos uma agitação. Muitas lives, muitas postagens, celebridades cedendo espaço junto a seus milhões de seguidores para ativistas e pesquisadoras(es) negras(os); até a TV aberta tem exibido uma programação que pauta o tema do racismo e suas implicações na estruturação de nosso país, das relações e de nossos processos de subjetivação.
Puxa vida!
Como quisemos que este movimento de “saída do armário” racial acontecesse no Brasil.
Que finalmente entendêssemos que de forma delirante tínhamos uma conta que não fechava já que 89% da população brasileira afirmava que existia racismo no Brasil (isso nos anos 90 de acordo com pesquisa do DataFolha), porém, 90% destas pessoas se diziam não racistas!
Se quase ninguém é racista, de onde então vinha a certeza de que o racismo corria solto por aqui?
Então, enfim, “o gigante acordou!” rs
Parece que parcela significativa desses 90% da população que não se via racista, agora começa a olhar para o tema com outros olhos.
Não sabemos ainda quais serão efetivamente os efeitos futuros desse novo olhar.
Pessoalmente, torço para que ele se traduza em práticas antirracistas.
Mas enquanto esse futuro próximo não chega, estamos ainda na “crista da onda” dos impactos da percepção desse elefante que sempre esteve na sala mas pouca gente via e sentia seu peso.
Entretanto, tenho percebido algumas situações que me chamam a atenção, dentre elas, o quanto pessoas negras estão sendo demandadas, quase a exaustão sobre este tema.
Demanda, em muitos casos, que se apresenta formalmente como um movimento empático de finalmente querer ouvir o que nós negras(os) temos a dizer sobre nossas experiências de discriminação e assujeitamento.
Mas como isso tem impactado as pessoas negras?
Essa “explosão empática” tem cuidado equilibradamente das necessidades de pessoas negras e não-negras em relação ao tema?
Pois é!
Tenho visto e refletido sobre este cenário, visto que pra mim é muito importante que elementos fundantes da Comunicação Não-Violenta(CNV) como é o caso da empatia, não sejam esvaziados ou surrupiados de sua significação mais profunda em detrimento de uma experimentação formal ou técnica.
Daí o que estou chamando de “superavit empático”.
Peguei emprestado da economia o termo “superávit” que seria aquilo que está para mais, aquilo que sobra nas operações financeiras. Lá, na economia, esse resultado é conhecido popularmente como lucro.
Mas aqui, na nossa economia emocional, o resultado é outro.
É pode ser inclusive um aumento do que nos falta: reconhecimento, atenção e sensibilidade para com nossos processos.
“Quero te ouvir!”
Será que tem sido formulados pedidos ou exigências?
Não afugentemos nosso passado histórico em que pessoas pretas eram violentamente privadas de exercer seu livre arbítrio, de poder escolher diante de brancos.
Pari-passu, pessoas brancas não tinham dúvidas de que seriam atendidas por pessoas negras.
Este tipo de dinâmica deixa marcas e alimenta imaginários sociais.
“Quero te ouvir!”
E se eu não quiser falar?
Quais as reações?
Não duvido que por trás de muitos “quero te ouvir!” há o desejo genuíno de abertura para a reinvenção de outros parâmetros sócio-raciais.
Se empatia diz de uma compreensão vinda do coração, em que se é possível enxergar a plenitude e humanidade do outro para além de uma curiosidade cognitiva, me pergunto se estamos mesmo desfrutando socialmente de diálogos e trocas empáticas sobre a questão racial.
O efusivo “vamos empatizar!” precisa ser complexificado.
Precisa também de, à luz de uma consciência sócio-histórica, se constituir em ambiente de cuidado e respeito.
Precisa levar em consideração as experiências de dor das pessoas negras sobre este tema.
Existem muitos e muitas de nós com recursos emocionais e prontidão cognitiva para ofertar seus conhecimentos, experiências e análises sobre o racismo? Sim! E ainda bem! Mas nem todas(os) de nós temos esse nível de disponibilidade subjetiva que nos permita lidar de maneira tão intensificada com fatos, situações e feridas negligenciadas por séculos.
E importante: não é obrigação nossa ensinar sobre o racismo! O conceito de raça e o racismo foram criados por brancos, como nos diz Grada kilomba — importante intelectual portuguesa; então cabe aos brancos desconstruí-lo.
Para não me alongar mais, convido a reflexão: será que pra se reposicionar sobre a questão racial não seria possível iniciar o processo por si própria(o)? Sim, as pessoas brancas precisam compreender que também são racializadas e que seu pertencimento de grupo lhe confere uma trajetória de privilégios ao longo da vida.
Tem ai vários “start”, né?!
Entender melhor a complexidade do racismo, se apropriar do conceito “branquitude” e de “privilégio”.
Só ai já há muitos elementos para a construção de novas narrativas e práticas que apoiam a construção de uma sociedade mais justa.
E digo sem titubear: existe já muita coisa produzida e disponível pra quem deseja se “aventurar” nesta compreensão.
Livros, filmes, vídeos, relatos, séries, produções acadêmicas diversas… tudo disponível a um click.
Se seu alarme soou e vc já entendeu que não dá pra não se mexer, há um universo de informações disponíveis pra te apoiar em seus movimentos de conexão com essa realidade que é nossa.
Se a CNV é sobre conexão, já passou da hora de estabelecermos esta!